CANÇÕES PRA MINHA ALMA - Triste, Louca ou Má...



Estou cansada de me esconder. Cansada de ser coagida e amedrontada. Ontem, ao visitar minha madrasta, cheguei e me deparei com o portão escancarado e tudo escuro, senti medo mas estava com muito mais medo da rua, embora fosse 19:00. Ser mulher tem dessas coisas, sentir que você tem menos direito de estar na rua do que qualquer outro homem. Lembro de ter acompanhado uma senhora e seus filhos do mercado até a casa da minha madrasta, só pra me sentir segura, só para não estar sozinha.

Entro na escuridão do quintal e bato o portão com força, primeiro, porque é um portão velho que nem sempre fecha, talvez por isso estivesse aberto, eu pensei. Segundo, porque não gosto de surpreender ninguém e odeio gente bisbilhoteira, logo, sempre me faço notar quando é preciso. Começo a subir as escadas, está tudo escuro lá embaixo.

A casa, a garagem, pertence a minha madrasta, ela mora lá com os meus irmãos. Quando estou no meio de escada vejo alguém surgir nas sombras, sorrateiro, silencioso e discreto, com ar de quem pegou alguém no flagra. Era meu pai biológico, uma criatura que foi responsável por boa parte da minha infelicidade na infância e adolescência.

Eu não preciso explicar o que significa em termos emocionais para uma mulher ver uma figura masculina surgindo das sombras querendo interagir com ela, o meu chão sumiu! Convivemos com feminicídio, machismo, estupro e tudo isso é plenamente justificado pela lei dos homens. Eu estou cansada, estou cansada de ter medo.


Foto - poa 24 horas
Ele me interroga, me coage, me faz me sentir insegura, ele me faz temer pela minha integridade física porque ele pode fazer isso, algo em como ele foi criado, algo na sociedade, sempre deixou claro que ele podia fazer isso, ele é homem, e ao HOMEM tudo pertence! E eu respondo a ele, porque foram anos de coação e tortura psicológica, eu respondo porque quero que ele vá embora!

Falo o que for mais fácil, o que vai fazer com que ele dê meia volta ao invés de me agredir ou me ameaçar, falo o que é mais fácil, porque não quero a possibilidade de ter os "amigos" dele me seguindo "pra darem um jeito em mim" porque "eu sou uma vagabunda que tem que passar pelo pior pra aprender a respeitar ".

Quero deixar claro, que esse indivíduo nunca me assediou sexualmente de forma alguma, essa não é a fraqueza dele. O que não quer dizer que os "amigos" dele não gostassem de assediar menininas cujo pai é um bêbado e drogado, sem falar que também era um irresponsável que adorava pegar a filha escondida da mãe pra levar pra sair, porque evidentemente, ele sabia o que era melhor pra mim.

Ele me interroga, como se no alto dos meus 25 anos eu lhe devesse explicações do porque eu estava ali, do porque estava visitando a mulher que "destruiu a vida dele" (ele é um agressor pra dizer o mínimo), se eu ia demorar lá, se eu ia dormir lá, porque meu irmão mais novo havia deixado escapar (imagino que por meio de coação também), será que era por isso que ele estava à espreita como um lobo na escuridão?

Menti, disse que estava de passagem, menti tão firmemente que poderia jurar sob a Bíblia num tribunal e esperei ele sair, esperei ele virar a equina, esperei ele desaparecer. Esperei, pensando nos problemas que poderia causar à minha madrasta posteriormente, pensei em como a ideia de maratonar Game of Thrones parecia ter perdido a graça.


Foto - MaisRo

Para ser bem ilustrativa, ela não é mais minha madrasta, ela é minha amiga, ela é minha família e sobretudo, faz parte da minha teia de apoio, essas teias que nós mulheres aranhas tecemos quando precisamos nos proteger e nos ajudar. A chamada sororidade, que as vezes, se mostra tão escassa hoje em dia. Quando vejo essa teia que tecemos, me lembro de todas as vezes que meu pai tentou destruir isso e falhou, para nossa sorte.

Ele passou o dia seguinte todo no bar da frente bebendo, se fazendo ouvir enquanto, eu estava trancada em casa e na maior parte do tempo sozinha. Finalmente, meu irmão caçula, porém adulto chegou do trabalho. Cansado, fez o que tinha pra fazer e foi dormir. Não demorou e nosso pai, bateu na porta (porque ele se aproveitou a fragilidade do nosso irmão mais novo e fez uma cópia da chave dele do portão, uma criança de 9 anos).

Ele deu a volta na casa de forma silenciosa, porém, eu via sua sombra espreitar as janelas, forçá-las para ver se estavam abertas, via sua sombra checando para ver se tinha movimento na casa, o ouvi forçando a porta, o ouvi tentar entrar de várias maneiras numa casa, onde ele não tinha sido convidado, uma casa que teoricamente, ou não tinha ninguém, ou as pessoas estavam desprotegidas dormindo. 

Me lembrei da decisão sábia da minha madrasta em por grades nas janelas, de por trancas nas portas, porque só a fechadura não estava adiantando. Me senti oprimida, por todas aquelas paredes que não podiam me proteger, por todas aquelas trancas que não poderiam me separar dele se ele quisesse e me lembrei de como a minha madrasta deve ter se sentido, nas vezes em que foi agredida, todas as vezes em que aquela casa foi a sua prisão e em como ela transformou essa casa em um lar depois dele ir embora. 



E tal qual a chapeuzinho ou o cordeirinho das histórias do lobo mal, eu fui abrir a porta, porque eu estava sobretudo, exausta, não queria mais sentir medo e queria acabar com isso logo. Ele não se surpreendeu, o que me faz pensar que ele sabia que eu estava ali e que ele novamente se sentia vitorioso por isso. Ele estava de tocaia a sei lá quanto tempo. 

De forma sínica ele perguntou: "ué dormiu aqui?"e continuou falando, afinal, o que eu tinha a dizer nunca foi importante. Ele disse que esteve olhando o meu facebook, que havia comentado nas minhas fotos, que sabia onde eu andava. Tudo isso rindo, gesticulando, me abraçando e cheirando a cerveja. Perguntei o que ele queria, e ele respondeu que tinha vindo pedir dinheiro pra comprar cigarro pro meu irmão do meio que estava dormindo. 

Me senti novamente aquela garotinha franzina e desprotegida que só pode esperar crescer para se livrar de toda essa merda. Voltei aquela prisão que era meu próprio corpo, aquela jaula da qual eu podia apenas ver o que eu queria, mas o meu braço não alcançava. Não podia expressar minhas ideias e tinha que dia após dia, suportar o fato de que eu era apenas um pedaço de carne, uma massa amorfa, que deveria seguir o que O PAI  mandava, ou como ele gostava de dizer MEU DONO. 

Tudo porque eu era mulher. Passei a infância sendo humilhada por ser mulher, me sentindo menor, me sentindo culpada. Passei minha infância e adolescência sendo coagida e sendo chamada de "puta" por ter amigos homens, de "sapatão" por cortar o cabelo curto e usar roupas masculinas, passei tudo isso sendo ameaçada pela ideia de que "alguém numa rua escura ia dar um jeito em mim" porque eu cresci com a cultura do estupro sendo esfregada na minha cara.




Eu me lembro, dele me levar em uma festa quando eu tinha 8 anos, uma festa que obviamente eu não tinha permissão da minha mãe pra ir e estava indo sem que minha mãe soubesse. Na festa tinha drogas, bebidas, som alto e ele ia tocar com a banda dele, o que significa que ele ficaria no camarim e eu ia ficar "solta" na festa. 

Eu podia pedir refrigerantes, doces e batatas fritas e ainda usar o jukebox, parecia um sonho. Havia sempre uma mulher que cuidava de mim, que não era a mesma, uma estranha, uma entidade que usava spikes e camisas de banda e frequentemente, couro, muito couro. Era a namorada de alguém, uma adolescente querendo se divertir, enfim, uma mulher qualquer, que não me conhecia, não conhecia meu pai, mas, tinha plena certeza que eu não devia estar ali.

Essas mulheres cuidavam de mim, mantinham os pedófilos longe, me ensinaram que não se podia sentar num vaso sanitário que não fosse o da minha casa, que nunca em hipótese alguma eu deveria aceitar uma bebida em que eu não pudesse abrir na hora e que também não deveria deixar meu copo largado à mercê dos outros. 

Digo mulheres porque foram muitas, e porque foram muitas festas desse tipo, o que resume bem o porque eu não fui uma adolescente festeira e também não sou uma adulta festeira. Hoje sou amiga de algumas delas, graças a maravilhosa internet que me permitiu reencontra-las. Elas fazem parte da minha teia de aranha também.


Foto - MaxNotícias
Numa dessas festas presenciei uma garota bêbada, hoje penso que talvez ela não devesse ser adulta, mas, pra mim ela era. Penso que talvez ela só quisesse se divertir um pouco. Foram feitas coisas com ela no banheiro, coisas que na época eu não sabia o que era, fecho os olhos e vejo os homens entrando, as vezes mais de um por vez.

Vejo meu pai entrando no banheiro. Não sei quanto tempo durou, mas, no final da festa os homens colocaram ela num carrinho de mão e a deixaram do lado de fora do bar, como se ela fosse um monte de lixo, com suas roupas jogadas cobrindo algo do corpo dela. Meu pai olhou pra mim e falou "ela queria, não seja assim, não me dê esse desgosto".

Eu não sabia o que dizer, não sabia o que era isso, mas, tinha certeza que não queria ser aquela garota, só disse "vou contar pra minha mãe" porque sei lá me pareceu sensato. Ele riu e disse"você vai apanhar mesmo". Por anos essa menina ficou sendo chamada de "carrinho de mão" não deu polícia, não deu nada. O bar continuou a funcionar, eu continuei indo lá, continuei pedindo batatas fritas e refrigerantes e sendo cuidada por mulheres que eu não conhecia mas, que eu sabia que podia confiar porque eram mulheres. 

Agora, acredito eu, que vocês entendam porque tenho medo dos amigos dele, porque tenho medo dele, porque por muitos anos me conformei com a jaula, contando os dias para fazer 18 anos e nunca mais vê-lo. Ver essa pessoa me lembra de tudo que eu já passei, de todos os homens que me seguiram de noite, de todos os assédios que passei, de toda a merda que ele já me fez passar. 


Foto - Ponte Jornalismo
Eu não sei como acabar esse texto, vou deixar uma música pra vocês ouvirem, ela se tornou um hino pra mim...ela fala essencialmente sobre ser mulher e sobre como somos resumidas aos arquétipos como: triste, louca ou má para nos descrever quando transgredimos os limites do status quo pré-estabelecidos pelos homens como o meu pai. 

São os homens como o meu pai que praticam feminicídio, estupros e usam todas as outras armas do patriarcado. Eu gostaria de acreditar na polícia e nas leis, mas, já fiz boletins de ocorrência demais. Casos como o que eu citei e como o da moça que "caiu" do prédio depois de brigar com o marido, existem aos montes.

O que contei aqui foi só para mostrar o quanto é fácil para um homem fazer isso. E quando eu digo homem, eu gostaria de deixar bem claro que não são todos, porém eu quero que essa exceção também entenda que esse poder é dado à todos os homens, inclusive os que são a exceção.

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